quarta-feira, 29 de julho de 2009

Os que não são consultados - Gustavo Corção

A Álvaro Tavares

Dias há em que a gente fica triste com o ofício que tem. Imagino como não deve ser enervante para as cozinheiras, nesses dias, a atmosfera das frituras e a companhia das caçarolas; como não deve ser monótono para o ferreiro o gemido das bigornas; como não deve ser triste, muito triste, o vai-e-vem da agulha na mão picada da velha costureira. Cada ofício é uma prisão: as coisas ficam sendo o que são pelo bagaço. E o cárcere do ofício é duro, asfixiante, enervante...

Ora, a minha profissão – assim me parece nesses dias – é ainda mais triste do que as outras. A cozinheira vê seus pratos feitos, substancialmente constituídos; e vê a alegria da casa alimentar-se de seu feijão. O ferreiro vê o ferro curvar-se, conformar-se e obedecer. E a costureira vê a perseverante agulha conquistar o pano de ponto em ponto, obrigando-o a seguir os contornos de um corpo e os movimentos de uma alma. Nesses ofícios tudo é concreto, tudo é palpável.

Considerem agora o meu. Que fabrico eu? Palavras. Escritas ou faladas, da manhã à noite, no papel, na sala de aula, ou diante de um microfone que esconde não sei quantos ouvintes – talvez nenhum – eu cozinho palavras, eu forjo palavras, eu costuro palavras. "Words, words, words..." Meu ofício é um ronronar que já dura trinta anos. Triste ofício. E não sou eu que só dele descreio. Tu também, amigo leitor, tu também não crês no meu ofício. Gostas de ler. Aprovas-me quando logro alinhavar com alguma felicidade os meus adjetivos ou quando prego com boa linha as minhas conjunções. Mas confessa: na verdade, não acreditas muito no valor dessa procissão de sinais escritos, e muito menos crês no fugaz valor do som articulado que sai duma velha garganta cansada de ronronar. Palavras hoje, palavras amanhã. Em tempo e contratempo...

Ora, estando eu num desses dias de preamar da melancolia, um outro oficial do mesmo ofício contou-me uma linda história. Ele pronunciava, diante de seleto auditório (como se costuma dizer), uma conferência sobre casamento, limitação de natalidade e aborto. Acabada a conferência e ouvidas as palmas que, como todos os sons, também se perdem no ar, o nosso conferencista voltou para casa. Ia triste. Revolvia na memória as ressonâncias do que dissera. O seleto auditório estava, evidentemente, de acordo com o que ele dissera. O universo continuava o mesmo depois da conferência; ou se não, se mudara, se o trajeto de algum átomo sofrera algum desvio milimétrico, as vidas, os corações, os seletos corações, ao contrário, seguiriam seus itinerários sem que o sopro das palavras conseguisse desviá-los. O que é uma conferência? Um sopro. Um vento. Falar é modo requintado de abanar... No caderninho de notas do conferencista, estão as outras conferências aprazadas: depois de amanhã, dia 15, dia 24, etc., etc., etc.

Quatro meses mais tarde, estando o nosso orador à porta de uma livraria a ver passar o mundo, é abordado por uma moça risonha com sete meses bem contados de gravidez. E sem mais preâmbulos, apresentou-se:

– Naquela conferência eu estava de três meses. E não ia ficar. Tinha resolvido não ficar. Mas o senhor disse aquela frase...

A moça despediu-se. Dobrou a esquina. O conferencista viu ainda uma vez o majestoso perfil da gravidez, e quedou-se a pensar. Que frase? Não se lembrava. Lembrou-se de uma página de Edgar Allan Poe, onde o poeta diz que as estrelas do céu nasceram de palavras de amor. A sua frase – que frase? – lá com suas conjunções, advérbios e proposições fizera alguma coisa maior, infinitamente maior do que as estrelas do céu: salvara uma criança. Será menino ou menina?

***

Ouvi hoje contar o caso de um acrobata americano que teve uma idéia. "Brain wave". Uma idéia nova para seu programa de televisão. É assim: em pé no rebordo do telhado de um arranha-céu ele faz cabriolas, não com seu próprio corpo, mas com o corpo de uma criancinha de meses que ele atira para o ar, apanha, equilibra, muda de mão e passa entre as pernas. Como se vê, o espetáculo deve ter sido excitante e gostoso para as pupilas cansadas de outros espetáculos mais rotineiros.

Essa história lembrou-me outra. Estavam duas ou três senhoras de nossa melhor sociedade, dessas que tomam chá de chapéu, a discutir o caso de um desabusado cirurgião (também da melhor sociedade) que provocara um aborto sem consultar ninguém. Dizia, então, uma das senhoras, a do chapéu de lilazes: "Eu acho que a família deve ser consultada..." A dama de chapéu cor-de-amora foi mais precisa: "Eu acho que compete à mãe, exclusivamente, resolver o caso". E estava a conversa neste ponto quando um amigo meu, tímido e gago, que nunca consegue ser ouvido por ninguém, sugeriu que quem devia ser consultada era a criança. E é a ausência dessa consulta que me horrorizou na história do acrobata. Por muito menos zangou-se um dia Jack London, numa tourada, porque os touros e cavalos não eram ouvidos.

Mas ninguém ouviu a reflexão de meu amigo. Como ninguém ouve a misteriosa linguagem com que os embriões de dois a três meses declaram categoricamente que querem viver. Como também cada dia menos se ouve a linguagem, já menos mistificada, das crianças de dois ou três anos que são energicamente contrárias ao divórcio. O fato é esse: na ginástica, no aborto e no divórcio, há pessoas, personagens, pessoas humanas, vivas, que estão envolvidas e que não são ouvidas.

"Ora, direis, ouvir crianças... certo perdeste o siso!", dirá algum leitor que ainda se lembre dos esplendores do nosso parnaso. Como é possível ouvir um embrião? Como se pode ponderar o que diz uma criança de dois anos?

Digo-te eu, leitor, que foste tu que perdeste o siso. E acrescento: o mundo está como está, e o nosso Brasil chegou onde sabemos que chegou, porque as pessoas (a começar pelas da melhor sociedade) não têm mais ouvidos para ouvir e entender a linguagem dos fetos. Fuzilam-se inocentes, aos milhões, sem remorsos, dada a circunstância supersônica de seus protestos. Vou explicar-te, amigo, mais uma vez, como se pode ouvir o que não fala, e consultar o que não tem a idade da razão. É muito simples: ouvindo e consultando a lei que está gravada na natureza das coisas, a lei que qualquer consciência desobstruída de chás e chapéus pode ouvir e consultar. Uma boa lavadeira, uma honesta cozinheira, sem procurar psicólogos e sociólogos, têm ouvidos para a voz da Inocência perfeita, para a voz que condena o aborto, o divórcio, e outras acrobacias feitas com carne de gente.

***

Por falar em aborto, ouvi dizer que na Suíça tornou-se legal. Não sei detalhes. Não sei em que circunstâncias, pelos quatro cantões da Suíça, tornou-se admissível matar a criança que teve a impertinência de brotar num ventre de moça. Imagino que os suíços, que são reconhecidamente um povo ordeiro e asseado, e sobretudo muito deferente com os turistas, tenham descoberto excelentes razões para assassinar pequeninos suíços. Uma das razões que imagino seria a seguinte: mata-se a criança excedente pelo bem da pátria e da família. Um pouco como se queima o café, para valorizá-lo. De uma senhora, que tem um Pontiac verde-claro, já ouvi dizer que se justifica "não guardar" para manter o "padrão de vida". Não se guarda a criança para guardar-se o Pontiac. Outra senhora, um pouco menos desvairada, alega que fuzila a criança não nascida em benefício das outras já nascidas.

Esses argumentos chegaram aos ouvidos de meu amigo Álvaro Tavares que sugere uma emenda para a teoria dessa senhora que mata um filho em benefício dos outros: admitido que se deva matar um para benefício da família e da sociedade, devemos deixar a criança nascer, e, mais tarde, num conselho de família, escolher a criança mais feia, ou mais bronca na tabuada, ou mais birrenta na mesa, e então executá-la para o maior bem da família e da pátria.

Concordo inteiramente com essa emenda apresentada pelo meu amigo Álvaro Tavares. Em nome da psicologia, da sociologia e da eugenia, acho precipitada a pena de morte que recai sobre a "criança desconhecida". O mundo, entre seus momentos de prolongado desvario, já teve a idéia de honrar o soldado desconhecido; mas nos seus piores momentos ainda não teve a idéia de fuzilar um criminoso desconhecido. E muito menos um desconhecido inocente. Aprovo pois a emenda e aqui acrescento o meu pesponto. Em lugar do conselho de família, eu sugiro que consultem um psicotécnico.

Voltando aos suíços, confesso que não me espantei demais com a notícia. Tenho desconfiança desses países muito ordeiros, muito arrumados. Tenho horror a hotéis. Só me espanto com uma incoerência que vejo nessa lei dos suíços: se a religião daquele pitoresco país é o turismo, se tratam tão bem os que chegam das Américas, porque diacho maltratam assim o pequenino turista que ingressa num dos quatro cantões pela mais antiga das portas?

(Novembro, 1953)

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Ítalo Calvino - Por que ler os clássicos?

Comecemos com algumas propostas de definição.

1. Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: "Estou relendo..." e nunca "Estou lendo...".

Isso acontece pelo menos com aquelas pessoas que se consideram "grandes leitores"; não vale para a juventude, idade em que o encontro com o mundo e com os clássicos como parte do mundo vale exatamente enquanto primeiro encontro.

O prefixo reiterativo antes do verbo ler pode ser uma pequena hipocrisia por parte dos que se envergonham de admitir não ter lido um livro famoso. Para tranqüilizá-los, bastará observar que, por maiores que possam ser as leituras "de formação" de um indivíduo, resta sempre um número enorme de obras que ele não leu.

Quem leu tudo de Heródoto e de Tucídides levante a mão. E de Saint-Simon? E do cardeal de Retz? E também os grandes ciclos romanescos do Oitocentos são mais citados do que lidos. Na França, se começa a ler Balzac na escola, e pelo número de edições em circulação, se diria que continuam a lê-lo mesmo depois. Mas na Itália, se fosse feita uma pesquisa, temo que Balzac apareceria nos últimos lugares. Os apaixonados por Dickens na Itália constituem uma restrita elite de pessoas que, quando se encontram, logo começam a falar de episódios e personagens como se fossem de amigos comuns. Faz alguns anos, Michel Butor, lecionando nos Estados Unidos, cansado de ouvir perguntas sobre Emile Zola, que jamais lera, decidiu ler todo o ciclo dos Rougon-Macquart. Descobriu que era totalmente diverso do que pensava: uma fabulosa genealogia mitológica e cosmogônica, que descreveu num belíssimo ensaio.

Isso confirma que ler pela primeira vez um grande livro na idade madura é um prazer extraordinário: diferente (mas não se pode dizer maior ou menor) se comparado a uma leitura da juventude. A juventude comunica ao ato de ler como a qualquer outra experiência um sabor e uma importância particulares; ao passo que na maturidade apreciam-se (deveriam ser apreciados) muitos detalhes, níveis e significados a mais. Podemos tentar então esta outra fórmula de definição:

2. Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los.

De fato, as leituras da juventude podem ser pouco profícuas pela impaciência, distração, inexperiência das instruções para o uso, inexperiência da vida. Podem ser (talvez ao mesmo tempo) formativas no sentido de que dão uma forma às experiências futuras, fornecendo modelos, recipientes, termos de comparação, esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de beleza: todas, coisas que continuam a valer mesmo que nos recordemos pouco ou nada do livro lido na juventude. Relendo o livro na idade madura, acontece reencontrar aquelas constantes que já fazem parte de nossos mecanismos interiores e cuja origem havíamos esquecido. Existe uma força particular da obra que consegue fazer-se esquecer enquanto tal, mas que deixa sua semente. A definição que dela podemos dar então será:

3. Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual.

Por isso, deveria existir um tempo na vida adulta dedicado a revisitar as leituras mais importantes da juventude. Se os livros permaneceram os mesmos (mas também eles mudam, à luz de uma perspectiva histórica diferente), nós com certeza mudamos, e o encontro é um acontecimento totalmente novo.

Portanto, usar o verbo ler ou o verbo reler não tem muita importância. De fato, poderíamos dizer:

4. Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira.

5. Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura.

A definição 4 pode ser considerada corolário desta:

6. Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.

Ao passo que a definição 5 remete para uma formulação mais explicativa, como:

7. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes).

Isso vale tanto para os clássicos antigos quanto para os modernos. Se leio a Odisséia, leio o texto de Homero, mas não posso esquecer tudo aquilo que as aventuras de Ulisses passaram a significar durante os séculos e não posso deixar de perguntar-me se tais significados estavam implícitos no texto ou se são incrustações, deformações ou dilatações. Lendo Kafka, não posso deixar de comprovar ou de rechaçar a legitimidade do adjetivo kafkiano, que costumamos ouvir a cada quinze minutos, aplicado dentro e fora de contexto. Se leio Pais e filhos de Turgueniev ou Os posssuídos de Dostoievski não posso deixar de pensar em como essas personagens continuaram a reencarnar-se até nossos dias.

A leitura de um clássico deve oferecer-nos alguma surpresa em relação à imagem que dele tínhamos. Por isso, nunca será demais recomendar a leitura direta dos textos originais, evitando o mais possível bibliografia crítica, comentários, interpretações. A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão; mas fazem de tudo para que se acredite no contrário. Existe uma inversão de valores muito difundida segundo a qual a introdução, o instrumental crítico, a bibliografia são usados como cortina de fumaça para esconder aquilo que o texto tem a dizer e que só pode dizer se o deixarmos falar sem intermediários que pretendam saber mais do que ele. Podemos concluir que:

8. Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe.

O clássico não necessariamente nos ensina algo que não sabíamos; às vezes descobrimos nele algo que sempre soubéramos (ou acreditávamos saber) mas desconhecíamos que ele o dissera primeiro (ou que de algum modo se liga a ele de maneira particular). E mesmo esta é uma surpresa que dá muita satisfação, como sempre dá a descoberta de uma origem, de uma relação, de uma pertinência. De tudo isso poderíamos derivar uma definição do tipo:

9. Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos.

Naturalmente isso ocorre quando um clássico "funciona" como tal, isto é, estabelece uma relação pessoal com quem o lê. Se a centelha não se dá, nada feito: os clássicos não são lidos por dever ou por respeito mas só por amor. Exceto na escola: a escola deve fazer com que você conheça bem ou mal um certo número de clássicos dentre os quais (ou em relação aos quais) você poderá depois reconhecer os "seus" clássicos. A escola é obrigada a dar-lhe instrumentos para efetuar uma opção: mas as escolhas que contam são aquelas que ocorrem fora e depois de cada escola.

É só nas leituras desinteressadas que pode acontecer deparar-se com aquele que se torna o "seu" livro. Conheço um excelente historiador da arte, homem de inúmeras leituras e que, dentre todos os livros, concentrou sua preferência mais profunda no Documentos de Pickwick e a propósito de tudo cita passagens provocantes do livro de Dickens e associa cada fato da vida com episódios pickwickianos. Pouco a pouco ele próprio, o universo, a verdadeira filosofia tomaram a forma do Documento de Pickwick numa identificação absoluta. Por esta via, chegamos a uma idéia de clássico muito elevada e exigente:

10. Chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs.

Com esta definição nos aproximamos da idéia de livro total, como sonhava Mallarmé. Mas um clássico pode estabelecer uma relação igualmente forte de oposição, de antítese. Tudo aquilo que Jean-Jacques Rousseau pensa e faz me agrada, mas tudo me inspira um irresistível desejo de contradizê-lo, de criticá-lo, de brigar com ele. Aí pesa a sua antipatia particular num plano temperamental, mas por isso seria melhor que o deixasse de lado; contudo não posso deixar de incluí-lo entre os meus autores. Direi portanto:

11. O "seu" clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele.

Creio não ter necessidade de justificar-me se uso o termo clássico sem fazer distinções de antiguidade, de estilo, de autoridade. (Para a história de todas essas acepções do termo, consulte-se o exaustivo verbete "Clássico" de Franco Fortini na Enciclopédia Einaudi, vol. III). Aquilo que distingue o clássico no discurso que estou fazendo talvez seja só um efeito de ressonância que vale tanto para uma obra antiga quanto para uma moderna mas já com um lugar próprio numa continuidade cultural. Poderíamos dizer:

12. Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu antes os outros e depois lê aquele, reconhece logo o seu lugar na genealogia.

A esta altura, não posso mais adiar o problema decisivo de como relacionar a leitura dos clássicos com todas as outras leituras que não sejam clássicas. Problema que se articula com perguntas como: "Por que ler os clássicos em vez de concentrar-nos em leituras que nos façam entender mais a fundo o nosso tempo?" e "Onde encontrar o tempo e a comodidade da mente para ler clássicos, esmagados que somos pela avalanche de papel impresso da atualidade?".

É claro que se pode formular a hipótese de uma pessoa feliz que dedique o "tempo-leitura" de seus dias exclusivamente a ler Lucrécio, Luciano, Montaigne, Erasmo, Quevedo, Marlowe, o Discours de la méthode, Wilhelm Meister, Coleridge, Ruskin, Proust e Valéry, com algumas divagações para Murasaki ou para as sagas islandesas. Tudo isso sem ter de fazer resenhas do último livro lançado nem publicações para o concurso de cátedra e nem trabalhos editoriais sob contrato com prazos impossíveis. Essa pessoa bem-aventurada, para manter sua dieta sem nenhuma contaminação, deveria abster-se de ler os jornais, não se deixar tentar nunca pelo último romance nem pela última pesquisa sociológica. Seria preciso verificar quanto um rigor semelhante poderia ser justo e profícuo. O dia de hoje pode ser banal e mortificante, mas é sempre um ponto em que nos situamos para olhar para a frente ou para trás. Para poder ler os clássicos, temos de definir "de onde" eles estão sendo lidos, caso contrário tanto o livro quanto o leitor se perdem numa nuvem atemporal. Assim, o rendimento máximo da leitura dos clássicos advém para aquele que sabe alterná-la com a leitura de atualidades numa sábia dosagem. E isso não presume necessariamente uma equilibrada calma interior: pode ser também o fruto de um nervosismo impaciente, de uma insatisfação trepidante.

Talvez o ideal fosse captar a atualidade como o rumor do lado de fora da janela, que nos adverte dos engarrafamentos do trânsito e das mudanças do tempo, enquanto acompanhamos o discurso dos clássicos, que soa claro e articulado no interior da casa. Mas já é suficiente que a maioria perceba a presença dos clássicos como um reboar distante, fora do espaço invadido pelas atualidades como pela televisão a todo volume. Acrescentemos então:

13. É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo.

14. É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível.

Resta o fato de que ler os clássicos parece estar em contradição com nosso ritmo de vida, que não conhece os tempos longos, o respiro do otium humanista; e também em contradição com o ecletismo da nossa cultura, que jamais saberia redigir um catálogo do classicismo que nos interessa.

Eram as condições que se realizavam plenamente para Leopardi, dada a sua vida no solar paterno, o culto da antiguidade grega e latina e a formidável biblioteca doada pelo pai Monaldo, incluindo a literatura italiana completa, mais a francesa, com exclusão dos romances e em geral das novidades editoriais, relegadas no máximo a um papel secundário, para conforto da irmã ("o teu Stendhal", escrevia a Paolina). Mesmo suas enormes curiosidades científicas e históricas, Giacomo as satisfazia com textos que não eram nunca demasiado up-to-date: os costumes dos pássaros de Buffon, as múmias de Federico Ruysch em Fontenelle, a viagem de Colombo em Robertson.

Hoje, uma educação clássica como a do jovem Leopardi é impensável, e sobretudo a biblioteca do conde Monaldo explodiu. Os velhos títulos foram dizimados, mas os novos se multiplicaram, proliferando em todas as literaturas e culturas modernas. Só nos resta inventar para cada um de nós uma biblioteca ideal de nossos clássicos; e diria que ela deveria incluir uma metade de livros que já lemos e que contaram para nós, e outra de livros que pretendemos ler e pressupomos possam vir a contar. Separando uma seção a ser preenchida pelas surpresas, as descobertas ocasionais.

Verifico que Leopardi é o único nome da literatura italiana que citei. Efeito da explosão da biblioteca. Agora deveria reescrever todo o artigo, deixando bem claro que os clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos e por isso os italianos são indispensáveis justamente para serem confrontados com os estrangeiros, e os estrangeiros são indispensáveis exatamente para serem confrontados com os italianos.

Depois deveria reescrevê-lo ainda uma vez para que não se pense que os clássicos devem ser lidos porque "servem" para qualquer coisa. A única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos.

E se alguém objetar que não vale a pena tanto esforço, citarei Cioran (não um clássico, pelo menos por enquanto, mas um pensador contemporâneo que só agora começa a ser traduzido na Itália): "Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. 'Para que lhe servirá?', perguntaram-lhe. 'Para aprender esta ária antes de morrer' ".

1981


In "Por que ler os clássicos", trad. Nilson Moulin, Companhia das Letras, São Paulo, 1993, pág. 9-16.