quarta-feira, 29 de julho de 2009

Os que não são consultados - Gustavo Corção

A Álvaro Tavares

Dias há em que a gente fica triste com o ofício que tem. Imagino como não deve ser enervante para as cozinheiras, nesses dias, a atmosfera das frituras e a companhia das caçarolas; como não deve ser monótono para o ferreiro o gemido das bigornas; como não deve ser triste, muito triste, o vai-e-vem da agulha na mão picada da velha costureira. Cada ofício é uma prisão: as coisas ficam sendo o que são pelo bagaço. E o cárcere do ofício é duro, asfixiante, enervante...

Ora, a minha profissão – assim me parece nesses dias – é ainda mais triste do que as outras. A cozinheira vê seus pratos feitos, substancialmente constituídos; e vê a alegria da casa alimentar-se de seu feijão. O ferreiro vê o ferro curvar-se, conformar-se e obedecer. E a costureira vê a perseverante agulha conquistar o pano de ponto em ponto, obrigando-o a seguir os contornos de um corpo e os movimentos de uma alma. Nesses ofícios tudo é concreto, tudo é palpável.

Considerem agora o meu. Que fabrico eu? Palavras. Escritas ou faladas, da manhã à noite, no papel, na sala de aula, ou diante de um microfone que esconde não sei quantos ouvintes – talvez nenhum – eu cozinho palavras, eu forjo palavras, eu costuro palavras. "Words, words, words..." Meu ofício é um ronronar que já dura trinta anos. Triste ofício. E não sou eu que só dele descreio. Tu também, amigo leitor, tu também não crês no meu ofício. Gostas de ler. Aprovas-me quando logro alinhavar com alguma felicidade os meus adjetivos ou quando prego com boa linha as minhas conjunções. Mas confessa: na verdade, não acreditas muito no valor dessa procissão de sinais escritos, e muito menos crês no fugaz valor do som articulado que sai duma velha garganta cansada de ronronar. Palavras hoje, palavras amanhã. Em tempo e contratempo...

Ora, estando eu num desses dias de preamar da melancolia, um outro oficial do mesmo ofício contou-me uma linda história. Ele pronunciava, diante de seleto auditório (como se costuma dizer), uma conferência sobre casamento, limitação de natalidade e aborto. Acabada a conferência e ouvidas as palmas que, como todos os sons, também se perdem no ar, o nosso conferencista voltou para casa. Ia triste. Revolvia na memória as ressonâncias do que dissera. O seleto auditório estava, evidentemente, de acordo com o que ele dissera. O universo continuava o mesmo depois da conferência; ou se não, se mudara, se o trajeto de algum átomo sofrera algum desvio milimétrico, as vidas, os corações, os seletos corações, ao contrário, seguiriam seus itinerários sem que o sopro das palavras conseguisse desviá-los. O que é uma conferência? Um sopro. Um vento. Falar é modo requintado de abanar... No caderninho de notas do conferencista, estão as outras conferências aprazadas: depois de amanhã, dia 15, dia 24, etc., etc., etc.

Quatro meses mais tarde, estando o nosso orador à porta de uma livraria a ver passar o mundo, é abordado por uma moça risonha com sete meses bem contados de gravidez. E sem mais preâmbulos, apresentou-se:

– Naquela conferência eu estava de três meses. E não ia ficar. Tinha resolvido não ficar. Mas o senhor disse aquela frase...

A moça despediu-se. Dobrou a esquina. O conferencista viu ainda uma vez o majestoso perfil da gravidez, e quedou-se a pensar. Que frase? Não se lembrava. Lembrou-se de uma página de Edgar Allan Poe, onde o poeta diz que as estrelas do céu nasceram de palavras de amor. A sua frase – que frase? – lá com suas conjunções, advérbios e proposições fizera alguma coisa maior, infinitamente maior do que as estrelas do céu: salvara uma criança. Será menino ou menina?

***

Ouvi hoje contar o caso de um acrobata americano que teve uma idéia. "Brain wave". Uma idéia nova para seu programa de televisão. É assim: em pé no rebordo do telhado de um arranha-céu ele faz cabriolas, não com seu próprio corpo, mas com o corpo de uma criancinha de meses que ele atira para o ar, apanha, equilibra, muda de mão e passa entre as pernas. Como se vê, o espetáculo deve ter sido excitante e gostoso para as pupilas cansadas de outros espetáculos mais rotineiros.

Essa história lembrou-me outra. Estavam duas ou três senhoras de nossa melhor sociedade, dessas que tomam chá de chapéu, a discutir o caso de um desabusado cirurgião (também da melhor sociedade) que provocara um aborto sem consultar ninguém. Dizia, então, uma das senhoras, a do chapéu de lilazes: "Eu acho que a família deve ser consultada..." A dama de chapéu cor-de-amora foi mais precisa: "Eu acho que compete à mãe, exclusivamente, resolver o caso". E estava a conversa neste ponto quando um amigo meu, tímido e gago, que nunca consegue ser ouvido por ninguém, sugeriu que quem devia ser consultada era a criança. E é a ausência dessa consulta que me horrorizou na história do acrobata. Por muito menos zangou-se um dia Jack London, numa tourada, porque os touros e cavalos não eram ouvidos.

Mas ninguém ouviu a reflexão de meu amigo. Como ninguém ouve a misteriosa linguagem com que os embriões de dois a três meses declaram categoricamente que querem viver. Como também cada dia menos se ouve a linguagem, já menos mistificada, das crianças de dois ou três anos que são energicamente contrárias ao divórcio. O fato é esse: na ginástica, no aborto e no divórcio, há pessoas, personagens, pessoas humanas, vivas, que estão envolvidas e que não são ouvidas.

"Ora, direis, ouvir crianças... certo perdeste o siso!", dirá algum leitor que ainda se lembre dos esplendores do nosso parnaso. Como é possível ouvir um embrião? Como se pode ponderar o que diz uma criança de dois anos?

Digo-te eu, leitor, que foste tu que perdeste o siso. E acrescento: o mundo está como está, e o nosso Brasil chegou onde sabemos que chegou, porque as pessoas (a começar pelas da melhor sociedade) não têm mais ouvidos para ouvir e entender a linguagem dos fetos. Fuzilam-se inocentes, aos milhões, sem remorsos, dada a circunstância supersônica de seus protestos. Vou explicar-te, amigo, mais uma vez, como se pode ouvir o que não fala, e consultar o que não tem a idade da razão. É muito simples: ouvindo e consultando a lei que está gravada na natureza das coisas, a lei que qualquer consciência desobstruída de chás e chapéus pode ouvir e consultar. Uma boa lavadeira, uma honesta cozinheira, sem procurar psicólogos e sociólogos, têm ouvidos para a voz da Inocência perfeita, para a voz que condena o aborto, o divórcio, e outras acrobacias feitas com carne de gente.

***

Por falar em aborto, ouvi dizer que na Suíça tornou-se legal. Não sei detalhes. Não sei em que circunstâncias, pelos quatro cantões da Suíça, tornou-se admissível matar a criança que teve a impertinência de brotar num ventre de moça. Imagino que os suíços, que são reconhecidamente um povo ordeiro e asseado, e sobretudo muito deferente com os turistas, tenham descoberto excelentes razões para assassinar pequeninos suíços. Uma das razões que imagino seria a seguinte: mata-se a criança excedente pelo bem da pátria e da família. Um pouco como se queima o café, para valorizá-lo. De uma senhora, que tem um Pontiac verde-claro, já ouvi dizer que se justifica "não guardar" para manter o "padrão de vida". Não se guarda a criança para guardar-se o Pontiac. Outra senhora, um pouco menos desvairada, alega que fuzila a criança não nascida em benefício das outras já nascidas.

Esses argumentos chegaram aos ouvidos de meu amigo Álvaro Tavares que sugere uma emenda para a teoria dessa senhora que mata um filho em benefício dos outros: admitido que se deva matar um para benefício da família e da sociedade, devemos deixar a criança nascer, e, mais tarde, num conselho de família, escolher a criança mais feia, ou mais bronca na tabuada, ou mais birrenta na mesa, e então executá-la para o maior bem da família e da pátria.

Concordo inteiramente com essa emenda apresentada pelo meu amigo Álvaro Tavares. Em nome da psicologia, da sociologia e da eugenia, acho precipitada a pena de morte que recai sobre a "criança desconhecida". O mundo, entre seus momentos de prolongado desvario, já teve a idéia de honrar o soldado desconhecido; mas nos seus piores momentos ainda não teve a idéia de fuzilar um criminoso desconhecido. E muito menos um desconhecido inocente. Aprovo pois a emenda e aqui acrescento o meu pesponto. Em lugar do conselho de família, eu sugiro que consultem um psicotécnico.

Voltando aos suíços, confesso que não me espantei demais com a notícia. Tenho desconfiança desses países muito ordeiros, muito arrumados. Tenho horror a hotéis. Só me espanto com uma incoerência que vejo nessa lei dos suíços: se a religião daquele pitoresco país é o turismo, se tratam tão bem os que chegam das Américas, porque diacho maltratam assim o pequenino turista que ingressa num dos quatro cantões pela mais antiga das portas?

(Novembro, 1953)

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Ítalo Calvino - Por que ler os clássicos?

Comecemos com algumas propostas de definição.

1. Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: "Estou relendo..." e nunca "Estou lendo...".

Isso acontece pelo menos com aquelas pessoas que se consideram "grandes leitores"; não vale para a juventude, idade em que o encontro com o mundo e com os clássicos como parte do mundo vale exatamente enquanto primeiro encontro.

O prefixo reiterativo antes do verbo ler pode ser uma pequena hipocrisia por parte dos que se envergonham de admitir não ter lido um livro famoso. Para tranqüilizá-los, bastará observar que, por maiores que possam ser as leituras "de formação" de um indivíduo, resta sempre um número enorme de obras que ele não leu.

Quem leu tudo de Heródoto e de Tucídides levante a mão. E de Saint-Simon? E do cardeal de Retz? E também os grandes ciclos romanescos do Oitocentos são mais citados do que lidos. Na França, se começa a ler Balzac na escola, e pelo número de edições em circulação, se diria que continuam a lê-lo mesmo depois. Mas na Itália, se fosse feita uma pesquisa, temo que Balzac apareceria nos últimos lugares. Os apaixonados por Dickens na Itália constituem uma restrita elite de pessoas que, quando se encontram, logo começam a falar de episódios e personagens como se fossem de amigos comuns. Faz alguns anos, Michel Butor, lecionando nos Estados Unidos, cansado de ouvir perguntas sobre Emile Zola, que jamais lera, decidiu ler todo o ciclo dos Rougon-Macquart. Descobriu que era totalmente diverso do que pensava: uma fabulosa genealogia mitológica e cosmogônica, que descreveu num belíssimo ensaio.

Isso confirma que ler pela primeira vez um grande livro na idade madura é um prazer extraordinário: diferente (mas não se pode dizer maior ou menor) se comparado a uma leitura da juventude. A juventude comunica ao ato de ler como a qualquer outra experiência um sabor e uma importância particulares; ao passo que na maturidade apreciam-se (deveriam ser apreciados) muitos detalhes, níveis e significados a mais. Podemos tentar então esta outra fórmula de definição:

2. Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los.

De fato, as leituras da juventude podem ser pouco profícuas pela impaciência, distração, inexperiência das instruções para o uso, inexperiência da vida. Podem ser (talvez ao mesmo tempo) formativas no sentido de que dão uma forma às experiências futuras, fornecendo modelos, recipientes, termos de comparação, esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de beleza: todas, coisas que continuam a valer mesmo que nos recordemos pouco ou nada do livro lido na juventude. Relendo o livro na idade madura, acontece reencontrar aquelas constantes que já fazem parte de nossos mecanismos interiores e cuja origem havíamos esquecido. Existe uma força particular da obra que consegue fazer-se esquecer enquanto tal, mas que deixa sua semente. A definição que dela podemos dar então será:

3. Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual.

Por isso, deveria existir um tempo na vida adulta dedicado a revisitar as leituras mais importantes da juventude. Se os livros permaneceram os mesmos (mas também eles mudam, à luz de uma perspectiva histórica diferente), nós com certeza mudamos, e o encontro é um acontecimento totalmente novo.

Portanto, usar o verbo ler ou o verbo reler não tem muita importância. De fato, poderíamos dizer:

4. Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira.

5. Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura.

A definição 4 pode ser considerada corolário desta:

6. Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.

Ao passo que a definição 5 remete para uma formulação mais explicativa, como:

7. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes).

Isso vale tanto para os clássicos antigos quanto para os modernos. Se leio a Odisséia, leio o texto de Homero, mas não posso esquecer tudo aquilo que as aventuras de Ulisses passaram a significar durante os séculos e não posso deixar de perguntar-me se tais significados estavam implícitos no texto ou se são incrustações, deformações ou dilatações. Lendo Kafka, não posso deixar de comprovar ou de rechaçar a legitimidade do adjetivo kafkiano, que costumamos ouvir a cada quinze minutos, aplicado dentro e fora de contexto. Se leio Pais e filhos de Turgueniev ou Os posssuídos de Dostoievski não posso deixar de pensar em como essas personagens continuaram a reencarnar-se até nossos dias.

A leitura de um clássico deve oferecer-nos alguma surpresa em relação à imagem que dele tínhamos. Por isso, nunca será demais recomendar a leitura direta dos textos originais, evitando o mais possível bibliografia crítica, comentários, interpretações. A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão; mas fazem de tudo para que se acredite no contrário. Existe uma inversão de valores muito difundida segundo a qual a introdução, o instrumental crítico, a bibliografia são usados como cortina de fumaça para esconder aquilo que o texto tem a dizer e que só pode dizer se o deixarmos falar sem intermediários que pretendam saber mais do que ele. Podemos concluir que:

8. Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe.

O clássico não necessariamente nos ensina algo que não sabíamos; às vezes descobrimos nele algo que sempre soubéramos (ou acreditávamos saber) mas desconhecíamos que ele o dissera primeiro (ou que de algum modo se liga a ele de maneira particular). E mesmo esta é uma surpresa que dá muita satisfação, como sempre dá a descoberta de uma origem, de uma relação, de uma pertinência. De tudo isso poderíamos derivar uma definição do tipo:

9. Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos.

Naturalmente isso ocorre quando um clássico "funciona" como tal, isto é, estabelece uma relação pessoal com quem o lê. Se a centelha não se dá, nada feito: os clássicos não são lidos por dever ou por respeito mas só por amor. Exceto na escola: a escola deve fazer com que você conheça bem ou mal um certo número de clássicos dentre os quais (ou em relação aos quais) você poderá depois reconhecer os "seus" clássicos. A escola é obrigada a dar-lhe instrumentos para efetuar uma opção: mas as escolhas que contam são aquelas que ocorrem fora e depois de cada escola.

É só nas leituras desinteressadas que pode acontecer deparar-se com aquele que se torna o "seu" livro. Conheço um excelente historiador da arte, homem de inúmeras leituras e que, dentre todos os livros, concentrou sua preferência mais profunda no Documentos de Pickwick e a propósito de tudo cita passagens provocantes do livro de Dickens e associa cada fato da vida com episódios pickwickianos. Pouco a pouco ele próprio, o universo, a verdadeira filosofia tomaram a forma do Documento de Pickwick numa identificação absoluta. Por esta via, chegamos a uma idéia de clássico muito elevada e exigente:

10. Chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs.

Com esta definição nos aproximamos da idéia de livro total, como sonhava Mallarmé. Mas um clássico pode estabelecer uma relação igualmente forte de oposição, de antítese. Tudo aquilo que Jean-Jacques Rousseau pensa e faz me agrada, mas tudo me inspira um irresistível desejo de contradizê-lo, de criticá-lo, de brigar com ele. Aí pesa a sua antipatia particular num plano temperamental, mas por isso seria melhor que o deixasse de lado; contudo não posso deixar de incluí-lo entre os meus autores. Direi portanto:

11. O "seu" clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele.

Creio não ter necessidade de justificar-me se uso o termo clássico sem fazer distinções de antiguidade, de estilo, de autoridade. (Para a história de todas essas acepções do termo, consulte-se o exaustivo verbete "Clássico" de Franco Fortini na Enciclopédia Einaudi, vol. III). Aquilo que distingue o clássico no discurso que estou fazendo talvez seja só um efeito de ressonância que vale tanto para uma obra antiga quanto para uma moderna mas já com um lugar próprio numa continuidade cultural. Poderíamos dizer:

12. Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu antes os outros e depois lê aquele, reconhece logo o seu lugar na genealogia.

A esta altura, não posso mais adiar o problema decisivo de como relacionar a leitura dos clássicos com todas as outras leituras que não sejam clássicas. Problema que se articula com perguntas como: "Por que ler os clássicos em vez de concentrar-nos em leituras que nos façam entender mais a fundo o nosso tempo?" e "Onde encontrar o tempo e a comodidade da mente para ler clássicos, esmagados que somos pela avalanche de papel impresso da atualidade?".

É claro que se pode formular a hipótese de uma pessoa feliz que dedique o "tempo-leitura" de seus dias exclusivamente a ler Lucrécio, Luciano, Montaigne, Erasmo, Quevedo, Marlowe, o Discours de la méthode, Wilhelm Meister, Coleridge, Ruskin, Proust e Valéry, com algumas divagações para Murasaki ou para as sagas islandesas. Tudo isso sem ter de fazer resenhas do último livro lançado nem publicações para o concurso de cátedra e nem trabalhos editoriais sob contrato com prazos impossíveis. Essa pessoa bem-aventurada, para manter sua dieta sem nenhuma contaminação, deveria abster-se de ler os jornais, não se deixar tentar nunca pelo último romance nem pela última pesquisa sociológica. Seria preciso verificar quanto um rigor semelhante poderia ser justo e profícuo. O dia de hoje pode ser banal e mortificante, mas é sempre um ponto em que nos situamos para olhar para a frente ou para trás. Para poder ler os clássicos, temos de definir "de onde" eles estão sendo lidos, caso contrário tanto o livro quanto o leitor se perdem numa nuvem atemporal. Assim, o rendimento máximo da leitura dos clássicos advém para aquele que sabe alterná-la com a leitura de atualidades numa sábia dosagem. E isso não presume necessariamente uma equilibrada calma interior: pode ser também o fruto de um nervosismo impaciente, de uma insatisfação trepidante.

Talvez o ideal fosse captar a atualidade como o rumor do lado de fora da janela, que nos adverte dos engarrafamentos do trânsito e das mudanças do tempo, enquanto acompanhamos o discurso dos clássicos, que soa claro e articulado no interior da casa. Mas já é suficiente que a maioria perceba a presença dos clássicos como um reboar distante, fora do espaço invadido pelas atualidades como pela televisão a todo volume. Acrescentemos então:

13. É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo.

14. É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível.

Resta o fato de que ler os clássicos parece estar em contradição com nosso ritmo de vida, que não conhece os tempos longos, o respiro do otium humanista; e também em contradição com o ecletismo da nossa cultura, que jamais saberia redigir um catálogo do classicismo que nos interessa.

Eram as condições que se realizavam plenamente para Leopardi, dada a sua vida no solar paterno, o culto da antiguidade grega e latina e a formidável biblioteca doada pelo pai Monaldo, incluindo a literatura italiana completa, mais a francesa, com exclusão dos romances e em geral das novidades editoriais, relegadas no máximo a um papel secundário, para conforto da irmã ("o teu Stendhal", escrevia a Paolina). Mesmo suas enormes curiosidades científicas e históricas, Giacomo as satisfazia com textos que não eram nunca demasiado up-to-date: os costumes dos pássaros de Buffon, as múmias de Federico Ruysch em Fontenelle, a viagem de Colombo em Robertson.

Hoje, uma educação clássica como a do jovem Leopardi é impensável, e sobretudo a biblioteca do conde Monaldo explodiu. Os velhos títulos foram dizimados, mas os novos se multiplicaram, proliferando em todas as literaturas e culturas modernas. Só nos resta inventar para cada um de nós uma biblioteca ideal de nossos clássicos; e diria que ela deveria incluir uma metade de livros que já lemos e que contaram para nós, e outra de livros que pretendemos ler e pressupomos possam vir a contar. Separando uma seção a ser preenchida pelas surpresas, as descobertas ocasionais.

Verifico que Leopardi é o único nome da literatura italiana que citei. Efeito da explosão da biblioteca. Agora deveria reescrever todo o artigo, deixando bem claro que os clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos e por isso os italianos são indispensáveis justamente para serem confrontados com os estrangeiros, e os estrangeiros são indispensáveis exatamente para serem confrontados com os italianos.

Depois deveria reescrevê-lo ainda uma vez para que não se pense que os clássicos devem ser lidos porque "servem" para qualquer coisa. A única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos.

E se alguém objetar que não vale a pena tanto esforço, citarei Cioran (não um clássico, pelo menos por enquanto, mas um pensador contemporâneo que só agora começa a ser traduzido na Itália): "Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. 'Para que lhe servirá?', perguntaram-lhe. 'Para aprender esta ária antes de morrer' ".

1981


In "Por que ler os clássicos", trad. Nilson Moulin, Companhia das Letras, São Paulo, 1993, pág. 9-16.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

O Coração Humano

Hoje a Igreja comemora o Sagrado Coração de Jesus. Posto em sua homenagem uma tradução do capítulo X do livro Le Bestiaire du Christ: La mystérieuse emblématique de Jésus-Christ, de Louis Charbonneau-Lassay.

Dedicarei aqui apenas algumas páginas ao simbolismo crístico do coração humano, esperando, se Deus o permitir, consagrar a este assunto um estudo bem mais amplo.
Lancemos primeiro um rápido olhar sobre os cultos do mundo précristão.

I. O CORAÇÃO ENTRE OS ANTIGOS

De acordo com alguns eruditos o homem teria, desde os tempos neolíticos, representado, com uma intenção simbólica, o órgão íntimo onde se elabora o seu sangue, onde se concentra sua vida: o dólmen de Croisic, por exemplo, conteria uma imagem em relevo do coração, ao mesmo tempo que outros símbolos: a serpente, o polvo (1), e talvez o nó iniciático (?).

Em todos os povos antigos cujas civilizações nos são conhecidas, entre os da Ásia, da Europa e da África setentrional sobretudo, até a nossa era, o significado relacionado à representação do coração humano refere-se mais à inteligência que ao sentimento, ou, mais exatamente, fazem da imagem do coração bem mais o ideograma da faculdade de conhecer, de raciocinar e de compreender que o amor afetivo e físico (2).

O egípcio que, em seus hieróglifos, figurou o coração do homem e o coração da Divindade pela imagem de um vaso e pelo fruto abacate, fazendo dele, no homem, a sede da alma; Platão não aceita essa concepção, o que nos valeu esta observação de São Jerônimo: "Os naturalistas perguntam onde reside particularmente a alma; Platão pretende que seja no cérebro, e Jesus Cristo no ensina que é no coração (3)."

Os sábios do Egito afirmavam que é do coração que vem tudo o que sabe o homem, e tudo o que ele pode fazer, e é dele, diziam eles, que a atividade humana recebe suas inspirações e sua força tanto no domínio do pensamento quanto no das ações corporais; e nossos pais estavam de acordo com eles quando tiraram da palavra latina Cor a palavra coragem, fazendo desta sinônimo de bravura, de intrepidez.

É toda a Antiguidade, do Oriente ao Ocidente, que Plínio resume ao escrever: "O coração oferece, em seu interior, o primeiro domicílio à alma e ao sangue em uma cavidade sinuosa... aí reside a inteligência (4)."

O nosso Vauvenargues nos diz que "os grandes pensamentos vêm do coração (5)", e trinta séculos antes dele, o lapicida que gravou a estela funerária do faraó Tutankamon inscreve que esse soberano meditava profundamente a felicidade de seu povo em comunhão com seu próprio coração (6).

Ah, o Coração humano, como o idealista Egipto amou-o! Leia-se por exemplo a fábula de Bitau que sacrificou-se a si mesmo, mas cujo coração não quer morrer, renasce e transforma-se a cada vez que o atinge um novo golpe mortal, até que por fim Anubis reanima Bitau ao reencontrar seu coração errante e mergulha-lo na água; então Bitau retorna à vida ao receber seu coração.

"Os egípcios, diz Plutarco, representam o céu, que sendo eterno não pode envelhecer, por um coração pousado sobre um braseiro cuja flama mantém seu ardor (7)."

De certa maneira, a teologia egípcia chegou mesmo a compreender a concepção profundamente reconfortante daquilo que a espiritualidade católica chamou mais tarde de "a habitação de Deus em nós". Em uma estela conservada no Museu de Turin, e traduzida por Chabas, Beka felicita-se por ter sido em sua vida "um homem justo, veraz e bom, tendo posto Deus em seu coração (8)." Beka diz justamente Deus, o deus Um, em hieróglifos Nuter, e não os deuses, que foram no Egito ancestrais divinizados; Beka compreendia muito bem que não poderia ser condenado, na pesagem das almas, um coração em que residisse a Divindade, e que a carregasse no centro mesmo de sua vida: no mesmo sentimento da posse divina em si, mas aplicando sua voz a outros pensamentos, são Paulo dirá mais tarde: "Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim."

A pesagem do coração humano no julgamento das almas após a morte, e enquanto autor responsável dos atos bons ou maus realizados durante a vida terrestre, é exposta nos monumentos egípcios em cenas que fazem pensar naquelas que nos mostram, nas igrejas francesas da Idade Média, o julgamento parciular dos atos de nossas vida, com são Miguel pesando as pequenas almas trêmulas na presença do anjo incumbido de nossa proteção e de Satã, nosso acusador.

Eis, por exemplo, essa cena de julgamento pintada sobre o esquife de uma sacerdotisa de Amon: diante do trono de Osíris, encarregado de julgar os mortos, cercado por seus acessores e junto a Maât, personificação divina da Verdade, ergue-se uma alta balança. Ao lado dela, ou abaixo dela, um monstro híbrido, "O Devorador", justiceiro da Divindade, está pronto para apossar-se da alma, se a justa pesagem resultar em seu prejuízo.

Em um dos pratos repousa, sozinho, o coração do defunto sob a aparência do vaso hieróglifo no qual estão as obras más da vida que vai ser julgada (Fig. I e II). Então Maât-Verdade aproxima-se; retira de seu penteado a branca pluma de avestruz que a caracteriza, e coloca-a no prato vazio; às vezes é ela mesma que senta-se no prato, mas como sua substância é espiritual, somente a pluma imaculada exerce o seu peso levíssimo e o equilíbrio perfeito deve então estabelecer-se entre o vaso-coração e a pluma (Fig. III); se isto não acontece, é o monstro justiceiro que triunfa, e a alma, vítima dos maus atos do coração, não será recebida no reino das felizes transformações.

"Os egípcios, diz A. Godard, colocavam no seio de suas casas uma cruz cravada em um coração (9)." E, de acordo com G. Ferrero(10), Wilkinson observou o desenho de uma casa egípcia em cuja fachada figurava um coração com uma cruz em cima "muito semelhante aos que se vê em certos quadros católicos(11)". Le Cour publicou um amuleto egípcio que apresenta o mesmo assunto.


II. A IDÉIA DO CORAÇÃO DE DEUS ENTRE OS ANTIGOS EGÍPCIOS

Partindo das concepções que acabamos de examinar, e muito naturalmente, o pensamento piedoso dos antigos egípcios fez também do coração de Deus Um a sede e a fonte das perfeições divinas. Vemos, em consequência, velhos textos evocarem expressamente o Coração divino; Ramsés II, tendo sido mal assistido por seus oficiais em um combate, repreende-os e termina dizendo-lhes: "Não os tenho mais em meu coração"; depois, voltando-se para seu pai do céu, o deus Amon, ousa falar-lhe assim: "O que é que tu fazes, meu pai Amon? É digno de um pai não velar sobre o seu filho?... e quem são esses asiáticos para o teu coração(12)?"

Em um dos hinos em honra a Aton, imagem da Divindade sob o emblama do disco solar, composto pelo Faraó Anemofis IV e por Nefer-Neferiu-Aton, sua graciosa esposa, lemos, no corpo de um longo texto: "...tu criaste a terra em teu Coração, quando estavas totalmente só... tu fizeste as estações para fazer nascer e crescer tudo aquilo que criaste... tu fizeste o céu distante para te elevares sobre ele e tu vês de lá tudo aquilo que criaste, tu somente. Tu apareces sob a forma de Aton vivo; tu te elevas brilhando, tu te afastas e retornas; tu estás em meu coração...(13)"

Uma mesma concepção é exposta na inscrição funerária de um sacerdote de Mênfis cujo texto com seu sentido foram fixados por Maspéro, Breasted e Erman; dele se deduz que os teólogos de escola de Mênfis distinguiam na obra do Autor de todas as coisas o papel do pensamento criador, que eles denominavam a parte do Coração, e o do instrumento da criação, que eles chamavam a parte da Língua, o Verboç também Alexandre Moret chegou, reproduzindo uma expressão egípcia, a intitular um de seus mais belos capítulos "Do Mistério do Verbo Criador(14)".

Outra escola teológica, que conhecemos através de monumentos do tempo de Ramessides (XIXª dinastia, em torno de 1.200 a.C.) expõe-nos uma teoria segundo a qual Deus, o Deus Um, cuja Natureza nos é apresentada como sendo formada de três entidades distintas que formam uma verdadeira trindade-unidade: Ftah, Horus e Thot. Ftah é a Pessoa suprema, a Inteligência perfeita; Horus, segundo a crença já então bem antiga, é o Coração compreensivo e afetivo da divindade, é o espírito que anima toda vida; Thot é o Verbo, instrumento de realização das obras divinas.

Ftah é designado como o Ser supremo, pois toda a tríade de alguma maneira procede dele. Ele é, de acordo com o documento citado acima, "aquele que torna-se Coração, aquele que torna-se Língua".

Horus, o Coração divino, foi representado nas artes sagradas pela figura do falcão. Desde os tempos da IVª dinastia, em torno de 2.840 a 2.680 a.C., ele aparece simbolizado assim; sobre a bela estátua de Quéfrem, que está no museu do Cairo, por exemplo, o Pássaro sagrado apoia seu coração, todo seu corpo, contra a nuca do faraó que ele protege, que inspira, e envolve sua cabeça com as asas abertas (Fig. IV). Há mesmo nessa atitude singular do falcão deus muito mais do que o signo de uma simples assistência dada ao faraó, de quem ele cobre e aquece o cerebelo no ponto, sensível por excelência, que a neurologia denomina "Ponte de Varólio", e que lhe põe em contato quase imediato com esse feixe de nervos cervicais que alguns anatomistas denominam "Árvore da Vida": não poderíamos dizer que, por esse cálido abraço o Pássaro-divino, emblema do Coração da divindade, fecunda, de alguma forma, o espírito de Quéfrem em seu cérebro, nessa hospedaria em que se detêm, diziam os sábios desse tempo, os pensamentos concebidos e nascidos no coração antes de serem exteriorizados pelo movimento da língua e pela abertura dos lábios?


III. O CORAÇÃO HUMANO, IMAGEM EMBLEMÁTICA DO CORAÇÃO DE JESUS CRISTO

Nas artes da cristandade perseguida e sob os primeiros imperadores constantinianos, a imagem do coração aparece frequentemente sem que se possa decidir razoavelmente a ver nela um motivo puramente ornamental, nem a assimilá-la sempre a essas folhagens cordiformes de convólvulos empregadas na epigrafia romana. O sábio explorador da antiga Cartago, R. P. Louis Delattre publicou numerosas imagens de corações em relevo em pratos ou lâmpadas dos séculos III ao VI, que são fabricações cristãs: esses corações são ornamentados ora com a cruz ora com as iniciais do Cristo, I sobre X (Iesus Xhristos), ou X sobre P (XRistos). Das duas uma: ou eles exprimem a habitação do Cristo no coração do cristão, ou eles são o emblema do próprio coração de Jesus Cristo, com reservas; de resto, o padre Delattre aceitava esta última interpretação, à qual a adesão mais recente do mestre Dom H. Leclercq dá um valor de quase certeza, sobretudo no que concerne à presença do coração marcado com uma cruz no centro de certas lâmpadas cartaginenses(15).

Por longos séculos, em Roma e no resto da cristandade, o culto do Coração de Jesus Cristo confunde-se com o da chaga feita em seu lado, no Calvário, pela lança do soldado romano que o traspassou.

Se não conhecemos, antes do final do séc. XIII, outras imagens simbólicas do coração humano que possam ser vistas como representando o do Salvador, ao menos os escritores desse tempo falam com frequência do Coração de Jesus Cristo como o lugar do seu amor pelos homens, e como a fonte do sangue que ele derramou para o resgate e a salvação do mundo. Por exemplo são Bernardo, no séc. XI(16), Guillaume de Saint-Thierry, por volta de 1.150(17); no mesmo período o autor da Vida Mística(18) e Guerric d'Igny e outros. A partir do séc. XIII, ou do início do séc. XIV, ele encontra-se gravado sob o nome mesmo do Cristo, XPS, em um molde para hóstias que está no muse de Vich na Espanha(19); em 1.308-1.309 um dos chefes da Ordem do Templo que foram encarcerados na torre de Chinon desenha-o com a faca na parede de sua prisão(20); e o vemos junto com a cruz, com raios que saem do ponto onde ela o penetra, no pequeno selo de Estème Couret, da mesma época, encontrado em Poitoy pelo conde R. de Rochebrune(21) (Fig. V). Às vezes ele acompanha a evocação de outros membros feridos pela crucifixão, ou então é ele mesmo ferido pelos cravos trágicos (Fig. VI e VIII)(22); também, no final do séc. XV, e com um exagero de estranho simbolismo, esse Coração de Cristo tem braços e pernas diretamente ligados a ele; assim o ex-voto esculpido ao pé das estátuas do Cristo sentado, esperando a morte, em Saint-Nizier de Troyes, em Venisy (Aisne) e pintado na capela do Corpus Christi Collège de Oxford(23) (Fig. VII).

Nunca, antes do séc. XIX, o Coração do Salvador foi representado com tanta frequência quanto no período que começa na segunda parte do séc. XV e termina na metade do séc. XVI.

Deixemos bem claro que essa figura do Coração de carne de Jesus Cristo é, no culto católico, o emblema de seu amor pelos homens. Ele é, disse Leão XIII, "o símbolo e a imagem da caridade infinita de Jesus Cristo(24)".

Este sentido fica ainda mais claro quando ele aparece envolto em chamas: ele é então segundo a linguagem litúrgica "fornalha ardente de caridade", Cor Jesu, fornax ardens caritatis(25).

Acrescentemos que o Coração ferido não muda de significado quando é representado em relação aos instrumentos da Paixão, ou então junto às chagas dos pés e das mãos, pois o suplício redentor foi, por excelência, um ato supremo de amor. Este foi certamente o pensamento de nossos pais: o Coração de Cristo é a verdadeira fonte do sangue que ele elabora, derrama sobre o mundo em resgate de amor pelas aberturas das chagas que fizeram no crucificado os chicotes e os espinhos, os cravos e a lança (Fig. VIII e IX).

Excepcionalmente, na antiga arte religiosa, o Coração de Jesus Cristo aparece em condições que exprimem uma profundidade, uma envergadura de pensamento magníficas: é assim que em um mármore do final do séc. XV proveniente da antiga Cartuxa de Saint-Denis d'Orques (Sarthe) (Fig. X) o Coração ferido de Jesus Cristo triunfa no meio de uma glória de chamas e de raios; ele forma, ao mesmo tempo, o centro de dois círculos, o primeiro contém a cruz e os signos astronômicos dos sete planetas, emblema dos espaços infinitos do firmamento, que correspondem aos sete céus dos místicos orientais(26); o segundo círculo contém os doze signos do zodíaco que presidem a sucessão das estações e dos anos, símbolo da infinita duração dos tempos passados e dos tempos futuros(27). Eis então o coração glorificado de Jesus Cristo colocado no lugar que ocupava a Terra no sistema geocêntrico de Ptolomeu que vigorava na época em que foi esculpido o mármore de Saint-Denis d'Orques(28), o Coração de Cristo colocado, também, como centro da infinitude do tempo e da infinitude do espaço, portanto como centro mesmo do Universo inteiro que ele inunda com a irradiação de seu amor e de sua glória. Pode-se imaginar uma apoteose mais magnífica e maior do que essa?...

Não é extraordinariamente surpreendente que um religioso desse tempo tenha podido conceber uma tal glorificação para quem conhece a doutrina cartusiana da época em relação ao culto do Coração de Jesus, tal como a fixaram as obras dos monges Ludolphe de Saxe, Dominique de Trèves e Denys le Chartreux, o "Doutor extático".

Quando surgem chamas do coração humano, nem sempre ele representa o Coração de Jesus Cristo, pois, abrasado pelo fogo do amor, ele pode ser apenas um coração absolutamente profano; mas, quando ele é o centro de uma irradiação de raios luminosos e gloriosos, podemos sempre, a menos que haja um texto afirmando o contrário, vê-lo como um símbolo do Coração do Redentor apresentando-se em sua glória, iluminando tudo com seu esplendor. É então que os místicos aclamam-no com as palavras de Davi: In lumine tuo videbimus lumen, "Em tua luz veremos a Luz(29)".





(1) Cf. P. Le Cour, A la recherche d'un monde perdu, pp. 67 a 77. [volta]

(2) Cf. Alex Moret, diversas obras, - Ph. Virey, La Religion de l'Ancienne Égypte - R. Guénon, La langage secret de Dante et des Fidèles d'Amour, in Voile d'Isis. Tradução de A. Martin, edição de 1854, p. 57. [volta]

(3) S. Jerônimo, Explication du cérémonial de l'Ancienne Loi, tradução de A. Martin, edição de 1854, p. 57. [volta]

(4) Plínio, História Natural, livro XI, 69. [volta]

(5) Vauvenargues, Les Maximes. [volta]

(6) Cf. Ph. Virey, La Religion De L'ancienne Egypte, p. 117. [volta]

(7) Plutarco, Ísis e Osíris, X. [volta]

(8) Ibid., p. 63. [volta]

(9) A. Godard, Le Messianisme, p. 168. [volta]

(10) G. Ferrero, Les Lois psychologiques du Symbolisme, p. 142. [volta]

(11) René Guénon, La Terre Sainte et le Coeur du monde, in Regnabit, T. XI, nº 4 e 5 (1926), p. 218. [volta]

(12) Ph. Virey, op. e loc. cit.. [volta]

(13) Cf. Alex Moret, Rois et dieux d'Égypte, p. 64. [volta]

(14) Alex Moret, Mystères Égyptien, II. - Le Mystère du Verbe Créateur,, pp. 103 a 138. [volta]

(15) Dom Leclerq, Diction. d'arch. chrêt.,, in dict. d'arch. chrêt. Fasc. LXXXIV, col. 1091. [volta]

(16) São Bernardo, in Cant. - Sermo LXI,, 4. [volta]

(17) Guillaume de Saint-Thierry, De Contemplando Deo, cap. I, 3 e Meditativae orationes, VI. [volta]

(18) Vita mystica, tradução de Apol. de Valence, passim. [volta]

(19) Cf. L. Charbonneau-Lassay, Moule à hosties du XIVe siècle au Musée épiscopal de Vich, in Regnabit. T. III, nº 4, pp. 280-285. [volta]

(20) Ibid., Le Coeur rayonnant du donjon de Chinon attribué aux Templiers, p. 45. [volta]

(21) Ibid., Le sceau d'Estème Couret, in Revue du Bas-Poitou, Ann. 1917, Livr. III e Regnabit. T. II, nº 9 (févr. 1922), pp. 264-268. [volta]

(22) L. Charbonneau-Lassay, Le Christ assis de Venizy et son blason, in Regnabit. T. IV (1923), nº 11, pp. 373 a 383. [volta]

(23) Conf. Lettre et dessin du Rév. C. Plummer, capelão do Corpus Christi ao autor, 23 de maio de 1913. [volta]

(24) Leão XIII, Encíclica Annum Sacrum. [volta]

(25) Ladainha do Sagrado Coração, invoc. 17. [volta]

(26) Cf. René Guénon, La Chirologie dans l'ésoterisme islamique, in Le Voile d'Isis, T. XXXVII, 1932, nº 149, p. 291. [volta]

(27) L. Charbonneau-Lassay, Le marbre astronomique de la Chartreuse de Saint-Denis d'Orques, in Regnabit. T. VI, 1924, nº 9, pp. 211 a 225. [volta]

(28) A obra de Copérnico que estabeleceu pela primeira vez os verdadeiras leis do sistema solar, o De orbium caelestibus revolutionibus, surgiu somente em 1543, ano da morte do autor. [volta]

(29) Davi, Salmos, XXXVI (Vulgata 35), 10. [volta]

segunda-feira, 18 de maio de 2009

G. K. Chesterton: Porque me converti ao catolicismo

Embora eu seja católico há apenas alguns anos, sei que o problema "por que sou católico" é muito diferente do problema "por que me converti ao catolicismo". Tantas coisas motivaram minha conversão e tantas outras continuam surgindo depois... Todas elas se colocam em evidência apenas quando a primeira nos dá o empurrão que conduz à conversão mesma.

Todas são também tão numerosas e tão diferentes umas das outras, que, no final das contas, o motivo originário e primordial pode chegar a parecer quase insignificante e secundário. A "confirmação" da fé, vale dizer, seu fortalecimento e afirmação, pode vir, tanto no sentido real como no sentido ritual, depois da conversão. O convertido não costuma recordar mais tarde de que modo aquelas razões se sucediam umas após as outras. Pois breve, muito breve, este sem número de motivos chega a se fundir em uma só e única razão.

Existe entre os homens uma curiosa espécie de agnósticos, ávidos esquadrinhadores da arte, que averiguam com sumo cuidado tudo o que em uma catedral é antigo e tudo o que nela é novo. Os católicos, ao contrário, outorgam mais importância ao fato de se a catedral foi construída para voltar a servir como o que é, quer dizer, como catedral.

Uma catedral! A ela se parece todo o edifício de minha fé; desta minha fé que é grande demais para uma descrição detalhada; e da que, com grande esforço, posso determinar as idades de suas diversas pedras.Apesar de tudo, estou seguro de que a primeira coisa que me atraiu ao catolicismo, era algo que, no fundo, deveria ter me afastado dele. Estou convencido de que vários católicos devem seus primeiros passos à Roma à amabilidade do defunto senhor Kensit.

O senhor Kensit, um pequeno livreiro da City, conhecido como protestante fanático, organizou em 1898 um bando que, sistematicamente, assaltava as igrejas ritualistas e perturbava seriamente os ofícios. O senhor Kensit morreu em 1902 por causa das feridas recebidas em um desses assaltos. Logo a opinião pública se voltou contra ele, classificando como "Kensitite Press" os piores panfletos anti-religiosos publicados na Inglaterra contra Roma, panfletos carentes de todo são juízo e de toda boa vontade.

Lembro especialmente agora estes dois casos: alguns autores sérios lançavam graves acusações contra o catolicismo, e, curiosamente, o que eles condenavam me pareceu algo precioso e desejável.

No primeiro caso —acredito que se tratava de Horton e Hocking— mencionavam com estremecido pavor, uma terrível blasfêmia sobre a Santíssima Virgem de um místico católico que escrevia: "Todas as criaturas devem tudo a Deus; ma a Ela, até mesmo Deus deve algum agradecimento". Isto me sobressaltou como um som de trombeta e me disse quase em voz alta: "Que maravilhosamente dito!" Parecia com se o inimaginável fato da Encarnação pudesse com dificuldade encontrar expressão melhor e mais clara que a sugerida por aquele místico, sempre que soubesse entendê-la.

No segundo caso, alguém do jornal "Daily News" (então eu mesmo ainda era alguém do "Daily News"), como exemplo típico do "formulismo morto" dos ofícios católicos, citou o seguinte: um bispo francês havia se dirigido a alguns soldados e operários cujo cansaço físico lhes tornava dura assistência na Missa, dizendo-lhes que Deus se contentaria apenas com sua presença, e que lhes perdoaria sem dúvida seu cansaço e sua distração. Então eu disse outra vez a mim mesmo: "Que sensata é essa gente! Se alguém corresse dez léguas por mim, eu estaria muito agradecido, também, que dormisse em seguida em minha presença".
Junto com estes dos exemplos, poderia citar ainda muitos outros procedentes daquela primeira época em que os incertos indícios de minha fé católica se nutriram quase com exclusividade publicações anti-católicas.

Tenho uma clara lembrança do que veio em seguida a estes indícios. É algo do qual me dou tanto mais conta quanto mais desejaria que não tivesse ocorrido. Comecei a marchar para o catolicismo muito antes de conhecer àquelas duas pessoas excelentíssimas a quem, a este respeito, devo e agradeço tanto: ao reverendo Padre John O'Connor de Bradford e ao senhor Hilaire Belloc; mas o fiz sob a influência de meu acostumado liberalismo político; o fiz até na toca do "Daily News".

Este primeiro empurrão, depois de dever-se a Deus, deve-se à história e à atitude do povo irlandês, apesar de que não haja em mim uma só gota de sangue irlandês.

Estive apenas duas vezes na Irlanda e não tenho nem interesses ali nem sei grande coisa do país. Mas isso não me impediu de reconhecer que a união existente entre os diferentes partidos da Irlanda deve-se no fundo a uma realidade religiosa, e que é por esta realidade que todo meu interesse se concentrava nesse aspecto da política liberal.

Fui descobrindo cada vez com maior nitidez, conhecendo pela história e por minhas próprias experiências, como, durante longo tempo se perseguiu por motivos inexplicáveis a um povo cristão, e continua odiando-lhe. Reconheci então que não podia ser de outra maneira, porque esses cristãos eram profundos e incômodos como aqueles que Nero jogou aos leões.

Creio que estas minhas revelações pessoais evidenciam com claridade a razão de meu catolicismo, razão que logo foi se fortificando. Poderia acrescentar agora como continuei reconhecendo depois, que a todos os grandes impérios, uma vez que se afastavam de Roma, passava-lhes exatamente o mesmo que a todos aqueles seres que desprezavam as leis ou a natureza: tinham um leve êxito momentâneo, mas logo experimentavam a sensação de estar enlaçados por um nó, em uma situação da qual eles mesmos não podiam se libertar. Na Prússia há tão pouca perspectiva para o prussianismo, como em Manchester para o individualismo manchesteriano.

Todo mundo sabe que a um velho povoado agrário, arraigado na fé e nas tradições de seus antepassados, espera-lhe um futuro maior ou pelo menos mais simples e mais direto ou pelo menos mais simples e mais direto que aos povos que não têm por base a tradição e a fé. Se este conceito se aplicasse a uma autobiografia, seria muito mais fácil escrevê-la do que se fosse esquadrinhar suas diversas evoluções, mas o sistema seria egoísta. Eu prefiro escolher outro método para explicar breve, mas completamente o conteúdo essencial de minha convicção: não é por falta de material que atuo assim, mas pela dificuldade e escolher o mais apropriado entre todo esse material numeroso. Entretanto tratarei de insinuar um ou dois pontos que me causaram uma especial impressão.

Há no mundo milhares de modos de misticismo capazes de enlouquecer o homem. Mas há uma só maneira entre todas de colocar o homem em um estado normal. É certo que a humanidade jamais pôde viver um longo tempo sem misticismo. Até os primeiros sons agudos da voz gelada de Voltaire encontraram eco em Cagliostro.

Agora a superstição e a credulidade voltaram a expandir-se com tanta vertiginosa rapidez, que dentro de pouco o católico e o agnóstico se encontrarão lado a lado. Os católicos serão os únicos que, com razão, poderão chamar-se racionalistas. O próprio culto idolátrico pelo mistério começou com a decadência da Roma pagã apesar dos "intermezzos" de um Lucrécio ou de um Lucano.

Não é natural ser materialista e tampouco sê-lo dá uma impressão de naturalidade. Tampouco é natural contentar-se unicamente com a natureza. O homem, pelo contrário, é místico. Nascido como místico, morre também como místico, principalmente se em vida foi um agnóstico. Enquanto que todas as sociedades humanas consideram a inclinação ao misticismo como algo extraordinário, tenho eu que objetar, entretanto, que uma só sociedade entre elas, o catolicismo, leva em conta as coisas cotidianas. Todas as outras as deixam de lado e as menosprezam.

Um célebre autor publicou mais uma vez uma novela sobre a contraposição que existe entre o convento e a família (The Cloister and the hearth). Naquele tempo, há 50 anos, era realmente possível na Inglaterra imaginar uma contradição entre essas duas coisas. Hoje em dia, a assim chamada contradição, chega a ser quase um estreito parentesco. Aqueles que em outro tempo exigiam a gritos a anulação dos conventos, destroem hoje sem dissimulação a família. Este é um dos tantos fatos que testemunham a seguinte verdade: que na religião católica, os votos e as profissões mais altas e "menos razoáveis" —por assim dizer— são, entretanto, os que protegem as melhores coisas da vida diária.

Muitos sinais místicos sacudiram o mundo. Mas uma só revolução mística o conservou: o santo está ao lado do superior, é o melhor amigo do bom. Toda outra aparente revelação se desvia por fim a uma ou outra filosofia indigna da humanidade; a simplificações destrutoras; ao pessimismo, ao otimismo, ao fatalismo, à nada e outra vez ao nada; ao "nonsense", à insensatez.

É certo que todas as religiões contêm algo bom. Mas o bom, a quinta essência do bom, a humildade, o amor e o fervoroso agradecimento "realmente existente" para com Deus, não se encontram entre elas. Por mais que as penetremos, por mais respeito que lhes demonstremos, com maior claridade ainda reconhecemos também isto: nos mais profundo delas há algo diferente do puramente bom; há às vezes dúvidas metafísicas sobre a matéria, às vezes havia nelas a voz forte da natureza; outras, e isto no melhor dos casos, existe um medo da Lei e do Senhor.

Se exageramos tudo isto, nasce nas religiões uma deformação que chega até o diabolismo. Só podem ser suportadas enquanto se mantiver razoáveis e medidas.

Enquanto estiverem tranqüilas, podem chegar a ser estimadas, como aconteceu com o protestantismo vitoriano. Pelo contrário, a mais alta exaltação pela Santíssima Virgem ou a mais estranha imitação de São Francisco de Assis, seguiriam sendo, em sua quinta-essência, uma coisa sadia e sólida. Ninguém negará por isso seu humanismo, nem desprezará a seu próximo. O que é bom, jamais poderá chegar a ser Bom DEMAIS. Esta é uma das características do catolicismo que me parece singular e ao mesmo tempo universal. Esta outra a segue:

Somente a Igreja Católica pode salvar o homem da destrutiva e humilhante escravidão de ser filho de seu tempo. Outro dia, Bernard Shaw expressou o nostálgico desejo de que todos os homens vivessem trezentos anos em civilizações mais felizes. Tal frase nos demonstra como os santarrões só desejavam —como eles mesmos dizem- reformas práticas e objetivas.

Agora bem: isto se diz com facilidade; mas estou absolutamente convencido do seguinte: se Bernard Shaw tivesse vivido durante os últimos trezentos anos, teria se convertido há muito tempo ao catolicismo. Teria compreendido que o mundo gira sempre com a mesma órbita e que pouco se pode confiar em seu assim chamado progresso. Teria visto também como a Igreja foi sacrificada por uma superstição bíblica, e a Bíblia por uma superstição darwinista. E um dos primeiros a combater estes feitos tivesse sido ele. Seja como for, Bernard Shaw desejava para cada um uma experiência de trezentos anos. E os católicos, muito ao contrário de todos os outros homens, têm uma experiência de dezenove séculos. Uma pessoa que se converte ao catolicismo, chega, pois, a ter de repente dois mil anos.

Isto significa, se o presenciamos ainda mais, que uma pessoa, ao se converter, cresce e se eleva ao pleno humanismo. Julga as coisas do modo como elas comovem a humanidade, e a todos os países e em todos os tempos; e não somente segundo as últimas notícias dos diários. Se um homem moderno diz que sua religião é o espiritualismo ou o socialismo, esse homem vive integramente no mundo mais moderno possível, quer dizer, no mundo dos partidos.

O socialismo é a reação contra o capitalismo, contra a insana acumulação de riquezas na própria nação. Sua política seria de todo diversa se fosse vivida em Esparta ou no Tibet. O espiritualismo não atrairia tampouco a atenção se não estivesse em contradição deslumbrante com o material estendido em todas as partes. Tampouco teria tanto poder se os valores sobrenaturais fossem mais reconhecidos.

Jamais a superstição tem revolucionado tanto o mundo como agora. Só depois que toda uma geração declarou dogmaticamente e de uma vez por todas, a IMPOSSIBILIDADE de que haja espíritos, a mesma geração deixou-se assustar por um pobre, pequeno espírito. Estas superstições são invenções de seu tempo —poderia se dizer em sua desculpa—. Já faz muito, entretanto, que a Igreja Católica tenha aprovado não ser ela uma invenção de seu tempo: é a obra de seu Criador, e continua sendo capaz de viver o mesmo em sua velhice como em sua primeira juventude: e seus inimigos, no mais profundo de suas almas, perderam já a esperança de vê-la morrer algum dia.

G. K. Chesterton

(In http://www.acidigital.com/biografias/vidas/chesterton1.htm)

Léon Bloy

Léon Bloy (11.07.1846-3.11.1917) foi um dos maiores escritores católicos modernos. Peregrino do Absoluto, Mendigo Ingrato, escreveu diários, romances, ensaios. Era uma alma profética, um espírito de fogo. Praticamente desconhecido entre nós, transcrevo abaixo alguns parágrafos seus, parte de um material que reuni para um espetáculo que talvez nunca venha a fazer. Fica então esta página, como homenagem a esse grande homem, que muito li e que muito me inspirou, e como substitutiva do espetáculo (por ora) abortado. Todos os textos retiro da tradução de Octávio de Faria,in "Léon Bloy", Gráfica Record Editôra, Rio de Janeiro, 1968.


Sei bem que nasci em tal época, em determinado lugar e que, entre os homens, tenho um nome. Tive pai e mãe, tive irmãos, amigos e inimigos. Tudo isso é indubitável, mas ignoro o nome de minha alma, ignoro de onde veio e, por conseguinte, não sei absolutamente quem sou. Quando ela deixar meu corpo, este se reduzirá a pó. E as queridas criaturas que me sobreviverão, chorando, herdeiras de meu reconhecimento, não poderão me designar em suas orações senão pelo nome de empréstimo que serviu a me separar um pouco dos outros mortais...

Deveríamos encontrar-nos hoje, em virtude de um decreto divino, muito anterior à criação dos dias. Pois assim acontece com todas as coisas, já que o acaso, deus dos imbecis, não existe. Deveríamos nos encontrar por motivos certamente admiráveis, tendo em vista um acontecimento desconhecido, cuja esperança embebeda os Céus. Será necessária toda a eternidade para admirar a absoluta indizível beleza das coisas que não somos nós mesmos a fazer. E sabeis que jamais fazemos o nosso destino... Ah, se soubéssemos, realmente, que não existem coisas pequenas e quanto tudo o que se passa é grande, seria para morrer de deslumbramento.

Li que um grande senhor do século XVIII tinha em seu castelo salas tão ricas que não havia jeito de cuspir senão no rosto do proprietário. É o que acontece ao Verbo encarnado. Fez o universo tão belo que só ficou a sua dolorosa Face para ser ultrajada. Então, por que fazer cerimônia? Tudo o que fica à sua volta tem um inapreciável valor. A própria esterqueira faz crescerem batatas que valem dinheiro e que são vantajosas para engordar porcos. Poderá haver um instante de dúvida na escolha?

Judas, que foi muito caluniado, mesmo por São João, que o acusa de ter sido um ladrão, Judas era simplesmente uma vítima do Absoluto. E foi por isso que foi, tão tolamente, devolver o dinheiro aos Príncipes dos Sacerdotes, em vez de pô-lo a render juros, como o teria feito um qualquer moderno burguês católico de Amsterdã ou de Roterdã.

O visível é o rastro dos passos do invisível.

Chegamos a esse formidável e absolutamente estranho momento em que, Deus tendo sido expulso de toda parte, nenhum homem saberá mais para onde ir...

Deus existe ou Deus não existe. Se se lhe concede a existência, é preciso concedê-la efetiva, supondo uma infinita continuidade da Criação, o que implica a onipotência absoluta no conhecido e no desconhecido, no visível e no invisível. Se o Ato criador se interrompesse, no mesmo instante o mais duro granito e todos os metais se reduziriam a poeira, e essa própria poeira não subsistiria. Não haveria mais nada. A natureza inteira se dissolveria no ininteligível vazio. Se esse postulado não for admitido, é-se forçosamente um ateu ou um imbecil, o que aliás é equivalente, do ponto de vista estético.

Nenhum homem pode ver senão o que está em si mesmo. Se vemos a Via-Láctea, é que ela existe verdadeiramente em nossa alma. Depois disso, que os senhores astrônomos digam tudo o que bem entenderem. Faz passar o tempo e é menos tolo do que jogar manilha ou fazer experiências de aviação. Penso obstinadamente que um Pater, dito com fé, por um homem muito humilde, tem mais poder para perfurar o espaço que o mais gigantesco dos telescópios e que tudo o que não é Oração é ilusão!

A maldição das criancinhas! A muito curta narração dos Evangelhos que se refere ao massacre dos Inocentes em Belém impressionou de tal modo o mundo que nenhum acontecimento histórico o ultrapassa na lembrança dos homens. Foi como que um pavor único, um meteoro de horror, difícil de admitir. Os artistas que ensaiaram traduzir a seu modo a espantosa concisão do Texto sacro parecem ter sido tomados por uma estranha paralisia. "Quem quer que receba em meu nome um desses pequenos", disse Jesus, "é a mim mesmo que recebe". O que pensar então daquele que os degola, que os mutila, ou que inflige às suas almas puras uma tristeza mais negra do que a morte? A maldição de uma única criança é uma coisa terrível, sobre-humana, que desconcerta até os mais fortes. O coração humano não foi feito para suportá-la. Mas, a maldição de uma multidão de crianças, é um cataclisma, um prodígio de terror, uma cadeia de montanhas sombrias no céu, com uma cavalgada de raios e trovões em seus cumes. É o infinito dos gritos de todos os abismos, é um não sei quê de altamente poderoso que não perdoa e que extingue a esperança de qualquer perdão. Os Herodes foram sempre os mordomos da Casa estéril, do Palácio das trevas nos quais as crianças são detestadas. Sabem o que têm de fazer e seu Senhor sabe, melhor ainda, o que prepara para recompensá-los de seu zelo.

Horror de viver em uma época tão má, tão renegada que é impossível nela encontrar um santo. Não digo um santo homem, mas um santo, curando doentes e ressuscitando mortos, a quem se possa dizer: o que quer Deus de mim e o que é preciso que eu faça? Nessa embrulhada terrível que pode fazer um pobre profeta?

Esse fim de século temível e carregado de mistério, como a maioria dos fins de século, oferece à observação filosófica a enorme singularidade moral de um avultado número de homens submetidos às pungentes angústias de um espiritualismo sem conclusão definida e que não se consegue precisar em nenhuma fórmula religiosa. Se se quiser considerar bem o que é a alma e o seu terrível apetite natural de unidade e de infinito, ficar-se-á facilmente surpreso com essa incrível força contra a inanição, com a inconcebível paciência desse tigre celeste, cativo e privado de alimento. É um milagre de extravagante compressão exercida sobre uma máquina infinitamente aquecida e que, no entanto, não explode. (...) Existem muitos desses estranhos atormentados que os outros séculos não conheceram e aos quais jamais teriam compreendido. Trata-se do inasfixiável, inextinguível sentimento religioso, sobrevivendo à própria noção de qualquer símbolo divino. As naturezas vulgares saem-se como podem, adorando o dinheiro ou a carne. As naturezas superiores não se saem de modo algum, e vão pelo mundo lançando gritos mais terríveis do que o das águias feridas que levam sua agonia para o fundo dos céus e que ficam eternamente a cair no firmamento.

Assistimos, hoje, à mais importante das feiras de almas jamais presenciadas. Inútil esperar encontrar Deus. Como poderia não se distanciar dela? É o Sangue de seu Filho que está no mercado, o muito precioso Sangue de seu Filho derramado pela salvação de todos os homens.

Viver a sua vida. Vive-se a sua vida quando se sabe ficar instalado num muito firme propósito de ignorar que há homens sofrendo, mulheres em desespero, crianças agonizando, e que se está em condições de aproveitar voluptuosamente de tudo isso.

Vive-se a sua vida quando se faz unicamente o que agrada aos sentidos, sem querer saber que há outras almas no vasto mundo e que, pessoalmente, se tem uma bem pequena alma exposta a estranhas e perigosas surpresas.

Acredito que um espírito avisado formularia assim os pensamentos que me agitam: o mundo moderno perdeu a pura noção do VERDADEIRO e não lhe resta mais senão a noção do ÚTIL. Isto é: de tanto orgulho a posteriori, chegou a destruir a idéia sobrenatural de um Deus revelador que o espírito humano não tinha jamais concebido senão a priori, e não logrou reter senão o arriscado conceito das materialidades ambientes cujo artesão negava.

Ninguém ainda percebeu, creio, que o sublime destino do Burguês é exatamente o contrário ou o inverso da Redenção, tal como a concebem os cristãos. É somente para ele que o gênero humano deve ser crucificado. Compreendam-me bem: somente para ele. Foi necessário, ao que se diz, que o Filho de Deus se encarnasse, que sofresse sob Pôncio Pilatos e morresse na cruz para que todos os homens fossem resgatados. Eis o inverso. É indispensável, é absoluta e de toda a eternidade necessário, que a totalidade das criaturas se imole, voluntária ou involuntariamente, para que o Burguês viva em paz, para que tenha tranqüilidade em suas tripas e seus rins, para que se saiba que ele é o verdadeiro Deus e que tudo foi feito para ele.

Amar outra coisa do que o que é ignóbil, malcheiroso ou estúpido; desejar a Beleza, o Esplendor, a Beatitude; preferir uma obra de arte a uma sujeira, e o Julgamento Final de Miquelângelo a um inventário de fim de ano; ter mais necessidade de uma plenitude da alma do que da saciedade dos intestinos; acreditar, enfim, na Poesia, no Heroísmo, na Santidade, eis o que o Burguês chama "viver nas nuvens"... Em resumo, para subir instantaneamente às nuvens, basta fazer, pensar, querer ou sonhar não importa o que seja limpo ou quase limpo, mesmo que só seja por um meio seguro. Eis, pois, que essas famosas nuvens tão energicamente anatematizadas pelo Burguês, podem, infelizmente, ser encontradas por ele a cada esquina. Não importa o que faça, não pode estar nunca certo de evitá-las. E eis porque sua sorte, tolamente invejada, é tão dolorosa! Freqüentemente se colocou o problema de saber porque o Burguês é tão porco, tão crapulosamente baixo, tão enterrado nas latrinas! Simplesmente: por causa das nuvens.

O bom Deus do Burguês é uma espécie de empregado a respeito de quem ele não se sente muito seguro e a quem absolutamente não honra com sua confiança. Paga-o mal e está sempre disposto a despedi-lo, quites a retomá-lo a seu serviço no mesmo dia, conforme a necessidade que tenha. Pois, não há como negar, nas lojas, o bom Deus é extremamente decorativo.

Que é o burguês? É um porco que gostaria de morrer de velhice.

O que mais repugna ao instinto do burguês, é a comunhão cotidiana. O burguês come tudo, exceto Deus.

O Burguês pode dispensar a vida eterna. É o que o distingue dos animais.

Os mais insignificantes burgueses são, sem o saber, terríveis profetas, que não podem abrir a boca sem fazer estremecer as estrelas, e os abismos da Luz são imediatamente invocados pela voragem de sua Estupidez.

É verdade que o mundo não é muito difícil de ficar admirado. É tão medíocre e tão baixo, esse apanágio de Satanás, que uma aparência de força ou de grandeza basta, comumente. Foi o que muitas vezes se viu nos nossos dias quando políticos ou escritores, capazes no máximo de aguilhoar carne ou de filar jantares, puderam se fazer admirar por multidões.

Que o queira ou não, que o saiba ou que o ignore, cada homem é forçado, a todo instante de sua vida, a declarar a morte de Jesus Cristo. Quem compra um pão, anuncia a morte de Jesus Cristo.

Espanto-me que alguns achem muito natural o que está acontecendo, quando, visivelmente, tudo nos ultrapassa e que nenhuma explicação puramente humana pode ser suficiente.

É a mais banal das ilusões acreditar que se é realmente o que se parece ser. E essa ilusão universal é corroborada, ao longo da vida, pela impostura tenebrosa de todos os nossos sentidos. Não será preciso nada menos que a morte para nos ensinar que nos enganamos sempre. No momento em que nos for revelada nossa identidade, tão desconhecida para nós mesmos, inconcebíveis abismos se desvendarão ante nossos verdadeiros olhos abismo em nós, e fora de nós. Os homens, as coisas, os acontecimentos, serão enfim esclarecidos, e cada um poderá verificar a afirmação daquele místico que dizia que, depois da Queda, o gênero inteiro adormeceu profundamente. Sono prodigioso das gerações, naturalmente acompanhado da incoerência e da deformação infinitas de todos os sonhos. Somos criaturas adormecidas povoadas de imagens semi-apagadas do Éden perdido, mendigos cegos às portas de um sublime palácio de portas fechadas. Não somente não conseguimos nos ver uns aos outros, como nos é impossível, pelo som da voz, identificar o nosso mais próximo vizinho. Eis o teu irmão, é-nos dito. Ah, Senhor, como poderei reconhecê-lo, nessa indiscernível multidão? E como poderia saber se se parece comigo, se ele foi feito à vossa imagem, tanto quanto eu, e se ignoro a minha própria figura? Enquanto espero que vos apraza acordar-me, só tenho meus sonhos, e eles, às vezes, são estarrecedores. Como me será mais difícil compreender as coisas que me rodeiam! Creio em realidades materiais, concretas, palpáveis, tangíveis como o ferro, indiscutíveis como a água de um rio, e uma voz interior, vinda das profundidades, certifica-me de que só existem símbolos, que meu corpo ele mesmo não é senão aparência e que tudo o que me circunda é uma enigmática aparência. Ensinam-nos que Deus nos dá seu Corpo para comer e seu Sangue para beber sob as aparências da Eucaristia. Então, por que quereriam que nos desse de um modo menos encoberto uma parcela de sua criação, por mais ínfima que fosse? Enquanto os homens se agitam em visões de sono, só Deus, único capaz de agir, faz realmente qualquer coisa. Ele escreve a sua própria Revelação na aparência dos acontecimentos desse mundo, e é por isso que o que se chama a história é tão perfeitamente incompreensível.

O que cada homem é, exatamente, ninguém jamais o poderá dizer. No máximo, os mais favorecidos podem invocar ascendentes encontrados, há séculos atrás, nos tenebrosos desvãos da história, e cujos nomes, inscritos em velhíssimos pergaminhos, ainda se podem ler nos raros túmulos que o tempo não destruiu. Os joões-ninguém, aos quais pertenço, não sabem nada ou quase nada de seus antepassados imediatos, paternos ou maternos. Mas, uns como outros, ignoram invencivelmente seu parentesco espiritual, e as gotas de sangue mais ou menos ilustre, de que os soberbos se vangloriam, não constituem para ninguém uma IDENTIDADE. Podeis saber quem vos engendrou. Mas, sem uma revelação divina, como podereis saber quem vos concebeu? Acreditais ter nascido de um ato, nascestes de um pensamento. Toda geração é sobrenatural. O estado civil, de que às vezes tanto vos orgulhais, nada diz sobre vossa alma e o seu nulo registro, a única coisa que pode testemunhar, é a vossa antecipada destinação no cemitério. Se existe uma árvore genealógica das almas, somente os Anjos podem ser admitidos a contemplá-la. As demais árvores assim designadas são decepcionantes e incertas. A genealogia das almas! Quem pode compreender isso?

Ah, é preciso que, um dia, Deus, que fez a língua do homem, vingue terrivelmente essa pobre ultrajada!

Certa vez um padre me escreveu dizendo "não ter alma de santo". Respondi que eu tenho a alma de um santo; que meu senhorio, que é um abominável burguês, meu padeiro, meu açougueiro, meu quitandeiro, que são talvez uns grandes canalhas, todos têm almas de santos, visto terem sido todos chamados, tão bem quanto aquele padre ou eu, tanto quanto São Francisco ou São Paulo, à Vida eterna. E terem sido todos resgatados pelo mesmo preço. Não existe nenhum homem que não seja um santo, virtualmente. O pecado ou os pecados, mesmo os mais graves, são acidentes acessórios que em nada afetam a substância. Na minha opinião, este é o ponto de vista certo. Quando, indo a um café, ponho-me a ler jornais ignóbeis e estúpidos, olho em torno de mim e vejo os freqüentadores daquele lugar, observo sua alegria tola, ouço suas bobagens ou suas blasfêmias, digo a mim mesmo que me encontro ali entre almas que são imortais, mas que não se dão conta disto, almas criadas para a adoração eterna da Santíssima Trindade e, por conseguinte, tão preciosas como os espíritos angélicos. Então, não é raro que me ponha a chorar, não de compaixão, mas por amor, lembrando-me que todas essas almas, por maior que seja sua cegueira atual, e sejam quais forem as atitudes aparentes do corpo, irão inexoravelmente a Deus, que é o seu destino final. Ah! se se soubesse como isso é belo! Mas vós - o tal padre, vós o sabeis e deveríeis mo ensinar, se já não o soubesse. Que pobres cristãos somos nós! Recebemos o Sacramento do Batismo, o da Confirmação, às vezes mesmo o da Ordem e, com tudo isso, nos falta caráter! Existe uma forma aparente de humildade que se assemelha à ingratidão. "Não tenho alma de santo." Fomos feitos santos por Nosso Senhor Jesus Cristo e não ousamos crer e dizer firmemente que somos santos! Ah!, meu caro amigo, que belas e exaltantes palavras poderiam ser ditas por um pregador que estivesse compenetrado dessas idéias.

Cada um de nós é santo, posto que somos todos membros de Jesus Cristo. A danação, tal como a logram tantos burgueses, é um ato infinitamente monstruoso que consiste em amputar Deus.

Tudo o que Deus fez é santo sob um aspecto que só Ele poderá explicar. A água é santa, as pedras são santas, as plantas são santas, o fogo é a devoradora figura de seu Espírito Santo. Toda a sua obra é santa. Só o homem, mais santo que as outras criaturas, não quer saber da santidade.

Os cristãos do mundo são imóveis e estão satisfeitos consigo mesmos. Os outros, em bem pequeno número, são torrentes que jamais se satisfazem. Deus vos quer santo. Não digo virtuoso, nem honrado, o que basta aos burgueses. Mas SANTO. E, a isso, saberá vos obrigar, nem que seja à custa de terríveis dores.

A população total do nosso globo é avaliada (1917) em um bilhão e quatrocentos milhões de indivíduos. Quantas almas realmente vivas nesse fervilhar de seres humanos? Uma por cem mil, talvez. Ou por cem milhões. Não se sabe. Há seres superiores, homens de gênio mesmo, talvez, cuja alma não foi vivificada e que morrem sem ter vivido. Um coração simples dirá cada dia, chorando de angústia: "Em que pé estou com o Espírito Santo? Sou verdadeiramente um vivo ou um morto que se deveria enterrar?" É terrificante pensar que se subsiste no meio de uma multidão de mortos que se acredita vivos e que o amigo, o companheiro, o irmão que se viu de manhã e que se vai tornar a ver à noite, só tem vida orgânica, uma aparência de vida, uma caricatura de existência. E que, na verdade, é apenas diferente daqueles que já se estão desfazendo nos túmulos. É intolerável, por exemplo, pensar que se nasceu de pai e mãe que não existiam. E que esse padre, presente no altar, talvez não seja muito diverso de um outro já falecido e que o Fármaco da imortalidade, o Pão que ele consagrou para nos transmitir a Vida eterna, ele o vai estender com mão de cadáver, proferindo com voz defunta as santas palavras da liturgia! Funcionam, no entanto, todos esses fantasmas, com uma perfeita regularidade. A missa daquele padre é tão válida quanto a de um santo. Certa, a absolvição que administra aos pecadores. A força de seu ministério sobrenatural perdura enquanto a morte não triunfou definitivamente dele. E assim acontece com todos os semi-trespassados que nos rodeiam e que somos forçados a chamar, por antecipação: mortos. Continua-se a agir e mesmo a pensar mecanicamente, com uma alma destituída de vida.

Não pensas nos mortos, não é? No entanto, não é mais um moço e, se não és completamente estúpido, deves ter reparado na espantosa semelhança que assumem, aos olhos de um velho, todas as fisionomias humanas como uma firmação mais precisa da identidade universal , à medida que nos afastamos das ondulantes ilusões da adolescência. Chegamos mesmo a não ver senão um só homem em todos os homens, quando nos aproximamos do túmulo.

Pois não há meio de prescindir do Mistério, quando se foi feito "à imagem e semelhança de Deus". Pode-se viver sem pão, sem vinho, sem teto, sem amor, sem felicidade. Não se pode viver sem Mistério. A natureza humana o exige.
Hoje, a feiúra do mundo visível é pavorosa, mas a sua feiúra invisível, a sua verdadeira feiúra, quem a poderá descrever? Refleti que a fé morreu, que o cristianismo está enterrado. Como quererão que não sucedam terríveis desgraças?
Uma vez por todas, é preciso que vos habitueis à minha linguagem e que vos compenetreis dessa idéia bem simples que não pertenço a nada e a ninguém a não ser a Deus e à sua Igreja. Quero dizer: a Igreja invisível. A visível, concordo, tornou-se abominável, se bem que me sinta infinitamente longe de permitir às pulgas e aos piolhos do traseiro de Zola ou de Clemenceau o exorbitante direito de ter alguma opinião a esse respeito. Tudo o que não é exclusivamente, perdidamente católico, não tem outro direito além do de se calar, sendo apenas digno de limpar os urinóis de hospital ou de raspar a sujeira aderida às latrinas de uma caserna de infantaria alemã.

Afirmo com segurança que o mundo católico moderno é um mundo condenado, danado; absoluta, irremediavelmente rejeitado. Um mundo de que o Senhor Jesus se fartou do modo mais total, um espelho de ignomínia onde Ele não pode se mirar sem ter medo, como em Getsêmani.

Vim pôr fogo no mundo e, assim, o que posso eu querer senão que ele queime? Assim fala Jesus, no Evangelho. Logo, todo católico tem o direito e o dever de ser um incendiário.

Hoje, no entanto, há um começo de inquietação. Há como que um pequeno sopro que poderá se tornar um vento pânico. As consciências ainda válidas sentem que esse farisaísmo não pode durar, que Deus vomita o catolicismo das "pessoas honradas" e que estamos no momento de restaurar o catolicismo dos Pés-descalços, o catolicismo dos que não têm alegrias neste mundo e cujo sofrimento clama às abóbadas do Paraíso, o catolicismo dos vencidos, dos ensangüentados, dos soluçantes, dos malditos, dos desesperados, daqueles que têm fome e sede, dos que gelam e dos que ardem, o catolicismo das grandes almas!...

Os danados não têm outro refrigério, no abismo de suas torturas, senão a visão das terríveis faces dos demônios. Os amigos de Jesus vêem à sua volta os cristãos modernos e é assim que podem conceber o inferno.

Simão, o Cirenaico, ajuda Jesus a carregar a sua Cruz. Os cristãos modernos põem suas cruzes nas costas de Jesus.

Tive muito freqüentemente a ocasião de falar da tolice de nossos católicos, prodígio enorme, que demonstra, por si só, a divindade de uma religião capaz de resistir-lhes.
Antigamente, há muito tempo mesmo, quando ainda havia bispos e cristãos, é coisa sabida que os moços educados para o bem, homens ou mulheres, podiam ler ou olhar impunemente as obras belas, mesmo se nelas se encontrassem esses detalhes que hoje fazem corar os nossos beatos. Era-se sadio e forte e as almas só assimilavam o Belo. Um sangue generoso, um estômago robusto, facilmente eliminam os venenos. Os anêmicos, os deprimidos, os moribundos de fome e miséria, são, pelo contrário, as vítimas primeiras de qualquer flagelo. O contágio galopa neles como os vermes nos cadáveres. Tal é a terrível situação dos católicos atuais, exclusivamente alimentados, de um século para cá, pelas mais debilitantes insignificâncias. Privados do alimento vigoroso das grandes obras, os leitores e leitoras dos "bons romances" correm para a luxúria como os porcos para o lodo. À força de precauções sujas ou imbecis, as imaginações católicas e sentimentais parecem voltadas apenas para o pecado da carne.

Os imbecis estão na Igreja como as pulgas nas casas velhas. Apavoram os visitantes e fazem com que os locatários se mudem.

Alguns padres parecem encarar os próprios Preceitos do Evangelho como brincadeiras já ultrapassadas. É como se os ouvíssemos dizer: "sim, sim, já ouvi essa, agora não funciona mais". Em geral, esses terríveis padres ficam habituados, desde o seminário, a ver nas Escrituras uma simples matéria de exame que nada tem em comum com o que eles chamam: a vida prática.

A arte não é o meu fim, apenas um instrumento de que aprendi a me servir como de uma espada ou de um canhão. E sou, antes e acima de tudo, uma alma religiosa. Daria todos os artistas do mundo e todas as obras-primas da arte pela Oração Dominical dita por um mendigo à beira de uma vala. Sabeis por acaso o que é essa Oração? Não, não é? Então, que podeis compreender de um homem que não escreveu senão para parafrasear suas sílabas e que pensa continuamente na morte?

Na Poesia e na Arte, um homem sem entusiasmo, isto é: sem Deus e não sabendo sofrer, não tem razão de ser e nem mesmo o direito de existir. Um escritor que nada diz às nossas almas é o mais vil dos escravos e o mais revoltante dos histriões. Profana a linguagem humana - a linguagem que Deus usou - e se torna culpado do misterioso crime que o Evangelho dos Cristãos proclama irremissível.

Ninguém, seja entre os melhores cristãos, parece procurar Deus, nem mesmo pensar Nele. Todos se sentam à mesa como cães e vão para a cama como porcos. Impossível conseguir a menor atenção, quando se fala em Deus.

Só há uma tristeza: a de não ser santo!

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Aquecimento Global

A Grande Farsa do Aquecimento Global

Veja o documentário produzido pelo canal 4 da televisão britânica sobre o aquecimento global.